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Epidemias e desastres

Eixo temático

Dois grandes eventos recentes caracterizam o objeto de estudo deste eixo: o desastre da barragem  da Empresa Vale em Brumadinho e a pandemia da COVID-19. Por razões diversas, eventos agudos de grande  intensidade causam enorme estresse às pessoas e aos sistemas de saúde. Há a necessidade imediata de  planejamento de ações de atendimento das vítimas e mitigação de risco. Com muita frequência, os desastres  e epidemias não podem ser planejados e são inéditos em sua natureza, significando que dados que possam  ajudar no planejamento para lidar com os mesmos são inexistentes ou pouco robustos. 

Usar a aprendizagem obtida com desastres e epidemias anteriores pode ser útil para orientar ações de  saúde para lidar com doenças inéditas como a COVID-19. Ações de planejamento em saúde incluem  atendimento rápido, adequado e equitativo dos sistemas de saúde para o aumento expressivo da demanda  de indivíduos doentes, entendimento da distribuição da doença e definição dos grupos de risco (que mais se  beneficiaram de vacinas e novos medicamentos quando disponíveis). No contexto da COVID-19, um uso  importante da IA tem sido para observar e predizer a evolução da pandemia, lidando com uma quantidade  enorme e sem precedentes de dados derivados da vigilância em saúde pública, monitoramento de surtos  epidêmicos em tempo real, previsão/projeção de tendências, informações e atualizações regulares da  situação de instituições e organismos governamentais e informações sobre a utilização dos serviços de saúde.99 Em um estudo recente, avaliamos o impacto de intervenções não farmacêuticas na transmissão de vírus e  disseminação do SARS-CoV-2 no Brasil. O sequenciamento genômico de 427 novos genomas e a análise de  um conjunto de dados genômicos geograficamente representativos de 21 dos 27 estados brasileiros  identificaram mais de 100 introduções internacionais do SARS-CoV-2 no Brasil. Viagens aéreas nacionais  durante esse período coincidiram com a disseminação do SARS-CoV-2 dos grandes centros urbanos para o  resto do país. Nossos dados sugerem que as intervenções atuais permanecem insuficientes para manter a  transmissão do vírus sob controle no Brasil.100 A experiência com a COVID-19 tem sido fundamental para  entendermos como usar a IA no sentido de predizer o comportamento da epidemia na tentativa de melhor  informar os gestores de saúde para organizarem os serviços e definirem intervenções não farmacêuticas,  como o isolamento social. Um enorme desafio é colocar na equação da predição as grandes diferenças sociais,  em especial nas grandes cidades, e dentro de um território que é maior do que toda a Europa. 

Ao contrário da COVID-19, existem epidemias que se repetem com frequência obedecendo padrões  apenas em parte esperados e previsíveis. A dengue, por exemplo, acontece apenas em épocas de chuva e  calor, uma vez que necessita o crescimento do mosquito vetor Aedes aegypti, e obedece um ciclo de cada 2  ou 4 anos, a depender da cidade ou país em estudo. Aplicando um modelo de inferência bayesiana em casos  geo-localizados de dengue, mostramos que os clusters de transmissão se expandem aumentando linearmente  seu diâmetro com tempo. O diâmetro do cluster, a duração e o tamanho da epidemia são proporcionalmente  menores quando as intervenções de controle foram mais oportunas e intensas.101 De fato, usando um modelo  de transmissão estocástica baseado em dados entomológicos, epidemiológicos e populacionais detalhados e  estimamos que o uso de inseticida de ultra-baixo volume evitou cerca de 24% dos casos sintomáticos ocorridos na área durante a temporada epidêmica de 2015-2016.102 Entretanto, apesar de sabermos bastante  acerca da expansão do mosquito vetor, da necessidade de chuva e temperaturas adequadas para seu crescimento, que ciclos de doença ocorrem a cada 2-4 anos, é muito difícil prever com precisão o momento  de entrada de dengue em determinado local.103 As duas últimas grandes epidemias de dengue em Belo  Horizonte tiveram 160 mil e 115 mil casos em 2016 e 2019, respectivamente (dados da Secretaria de Saúde  de Belo Horizonte). A primeira começando no final de Dezembro do ano anterior e a outra apenas em março  de 2019. Sabendo que não existem formas de controle adequado da dengue ou de outras arboviroses (vacinas  ou medidas adequadas de controle vetorial), preparar o sistema de saúde para lidar de forma coordenada e  equitativa a este aumento de demanda não é simples. Em um estudo recente, avaliamos quantitativamente  a utilidade de dados adquiridos pelo Twitter para a detecção e monitoramento precoces das epidemias de  dengue,18 semanalmente, tanto ao nível de país quanto o de cidade. Demonstramos que os tweets podem  estimar a incidência de dengue na semana atual (nowcasting), mas também prever a dengue em até 4  semanas no futuro, tanto no país quanto na cidade com alta capacidade de estimativa. Os dados obtidos do  Twitter foram melhores que os dados disponíveis na web, no Google Trends e os registros de acesso à  Wikipedia para prever o risco de dengue 18. De fato, o uso de Tweets com outros dados epidemiológicos  apresenta boa performance na previsão de entrada e propagação de dengue em um centro urbano.103 Por  outro lado, obter dados que permitam uma melhor definição geográfica da distribuição da doença em grande  centros urbanos (regiões ou bairros) e que permitam uma boa separação entre dengue e outras arboviroses,  como a zika e a chikungunya, é um enorme desafio. Em nossa experiência prévia com o Observatório da  Dengue, notamos que o gestor municipal, aquele que toma as decisões que mais importam à população, tem  dificuldade em entender o potencial do uso de IA para acompanhar epidemias e planejar ações de saúde para  mitigar seus efeitos. 

Os desastres ambientais são cada vez mais frequentes em todo mundo, causando, muitas vezes,  transtornos mentais e doenças diversas nas populações afetadas. As cidades de Mariana e Brumadinho foram  palco de graves desastres provocados pelo rompimento de barragens de rejeitos de minério, com enormes  repercussões sociais, ambientais e de saúde. Estudos mostram que a crise pós-desastre afeta inicialmente a estrutura típica diária, o que impacta principalmente grupos vulneráveis, como crianças e idosos. Esse público  está em fases da vida mais sensíveis aos transtornos mentais e são ainda mais vulneráveis diante da  desorganização da estrutura social e do núcleo familiar. A mudança brusca da realidade e as perdas podem  trazer danos fisiológicos e psíquicos, levando a quadros preocupantes como comprometimento do  desenvolvimento cognitivo, ansiedade, depressão e suicídio. Assim, somado à grande ênfase na mitigação,  mais pesquisa em níveis regional e local são necessárias, para compreender adequadamente, preparar e  adaptar frente aos impactos dos desastres ambientais 104106. Uma abordagem disciplinada, de longo prazo, para  estudar esses problemas, envolvendo órgãos de saúde pública e comunidades clínicas e acadêmicas, é  necessária para se compreender de forma abrangente o significado do impacto desses eventos na saúde das  populações afetadas. 

Em comum os desastres e os eventos epidêmicos trazem o enorme desafio de planejar as ações de saúde  de forma coordenada e equitativa, para que o impacto dos eventos nas populações seja o menor possível.  Mais ainda, levar com que os “gestores na ponta da linha” (municipais) compreendam seu valor, seu uso,  limites e vantagens, para que ações possam ser tomadas de forma rápida e eficaz. 

Pesquisadores principais: Mauro Teixeira, Cesar Victora, Marco Romano-Silva, Carla Freitas, Jaime Ramirez, Jussara Almeida


Referências:

18. Marques-Toledo C de A, Degener CM, Vinhal L, Coelho G, Meira W, Codeço CT, et al. Dengue prediction by the web: Tweets are a useful tool for estimating and forecasting Dengue at country and city level. PLoS Negl Trop Dis. 2017 Jul;11(7):e0005729.

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100. Candido D da S, Claro IM, de Jesus JG, Souza WM de, Moreira FRR, Dellicour S, et al. Evolution and epidemic spread of SARS-CoV-2 in Brazil [Internet]. Infectious Diseases (except HIV/AIDS). medRxiv; 2020. Available from: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.06.11.20128249v1

101. Guzzetta G, Marques-Toledo CA, Rosà R, Teixeira M, Merler S. Quantifying the spatial spread of dengue in a non-endemic Brazilian metropolis via transmission chain reconstruction. Nat Commun. 2018 Jul 19;9(1):2837.

102. Marini G, Guzzetta G, Marques Toledo CA, Teixeira M, Rosà R, Merler S. Effectiveness of Ultra-Low Volume insecticide spraying to prevent dengue in a non-endemic metropolitan area of Brazil. PLoS Comput Biol. 2019 Mar;15(3):e1006831.

103. Marques-Toledo CA, Bendati MM, Codeço CT, Teixeira MM. Probability of dengue transmission and propagation in a non-endemic temperate area: conceptual model and decision risk levels for early alert, prevention and control. Parasit Vectors. 2019 Jan 16;12(1):38.

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